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O dia em que dançamos o Toré

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Por Arlicélio Paiva*

O ano era 2005, mês de dezembro, e nós estávamos discutindo a respeito do tema “desertificação” com os alunos de Agronomia da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC) que se localiza em Ilhéus, Bahia. Naquela ocasião, resolvemos marcar uma viagem de campo para a região norte da Bahia, a fim de conhecermos o problema de perto.

A viagem exigiu uma grande logística, face ao difícil acesso de alguns trechos e pelo fato de a região se localizar próximo ao polígono da maconha, que estava muito violento na época. Contamos então com o apoio do IBAMA, Exército, Polícia Militar do Estado da Bahia e da Prefeitura de Rodelas, Bahia, município que se localiza na margem do rio São Francisco.
No primeiro dia de campo, conhecemos a Reserva Biológica do Raso da Catarina, uma das regiões mais secas do Nordeste brasileiro. O Raso é uma região de difícil acesso e tivemos que ser transportados por caminhões de tropas do Exército. O nosso guia era o então chefe da reserva, o Agrônomo Sérgio Freitas, que nos acompanhou durante toda aquela jornada. Pudemos perceber in loco a fragilidade natural do Bioma Caatinga sobre um solo arenoso. Notamos que, caso a Caatinga fosse retirada, aquele ecossistema se tornaria, de imediato, um deserto. Dentre as unidades de conservação ambiental, a reserva biológica é a mais restritiva, não permite, sequer, visitação, a não ser que seja de interesse científico, tampouco que se retire qualquer tipo de material como amostras de solo, rochas, plantas, animais, dentre outros.

Sérgio Freitas fez uma explanação para todos nós, explicando sobre o ambiente daquela reserva ecológica, que abrange cerca de 100 mil hectares, e da importância de preservar a fauna e a flora do Raso. Ele também foi enfático ao nos dizer de como nós deveríamos nos comportar durante a visita. No retorno para Paulo Afonso, trafegando em caminhões que não tinham suspensão adequada para amortecer os choques, por uma estrada areenta e esburacada, nós tínhamos que nos segurar firmemente na carroceria para que não ocorresse nenhum tipo de acidente. Em um determinado momento, um dos nossos estudantes deu um grito de dor e eu solicitei ao motorista para que parasse o caminhão. Ao conversar com o aluno, ele relatou que havia furado a mão em alguma sacola que estava circulando pela carroceria. Ao averiguar as sacolas, percebemos que um dos alunos havia coletado uma amostra de cabeça de frade, um cacto espinhento e de forma arredondada. Na qualidade de professor, eu fiquei envergonhado perante o chefe da reserva. Como ainda estávamos dentro do Raso da Catarina, nós fomos até um local adequado e replantamos o cacto. Esse ocorrido serviu como primeiro aprendizado extra para todos nós – respeitar sempre a legislação ambiental.
No dia seguinte, a nossa aula de campo foi no Município de Rodelas, a fim de conhecermos um deserto formado por dunas de areia com mais de 5 m de altura. Ao chegar na cidade, fomos recebidos pelo técnico agrícola da Prefeitura Municipal, sr. Rosalvo, e por uma escolta da Polícia Militar do Estado da Bahia. O nosso plano era atravessar o deserto e chegar até a margem do rio São Francisco, local onde os ventos fortes expuseram material arqueológico de povos ancestrais, conhecidos como Zurubabel.

Naquele dia, o calor estava insuportável, no deserto chegava a mais de 45 oC. Logo depois do início da caminhada, alguns alunos sentiram-se mal e ficaram abrigados na sombra de uma das poucas árvores que existia no local. Seguimos a caminhada e mais alunos ficaram “fora do combate”. Um pouco mais adiante, outros alunos relataram que a sola das suas botas havia se soltado, a cola derreteu em função do calor da areia. Naquele momento, eu comecei a imaginar que não atingiríamos a nossa meta de chegar até a margem do rio. Assim que dei o primeiro passo para continuar a caminhada, a sola da minha bota também ficou na areia. Diante daquela situação, obedecemos ao conselho do técnico, acostumado com caminhadas pelo deserto, de que deveríamos abortar a nossa missão. Tivemos o nosso segundo aprendizado extra – aprender a dar um passo atrás para recomeçar. Desistimos do deserto e fomos visitar uma área de plantação de amendoim. Após a visitação, paramos para almoçar e, na sequência, fomos conhecer a aldeia indígena Tuxá, cujos indígenas se originaram dos ancestrais de Zurubabel, denominado atualmente como Surubabel. Por essa razão, publicamos mais tarde uma reportagem intitulada “O deserto de Surubabel na Bahia”. Temos a honra de ter batizado o deserto como o nome da ancestralidade indígena.

Com a criação da barragem do lago de Itaparica, os indígenas foram realocados para as cercanias da cidade, permanecendo, até aquela ocasião, sem terras para que pudessem cultivar os seus alimentos e continuar com o tipo de vida que eles estavam acostumados. Recebemos as boas-vindas do Cacique, que nos homenageou com o Toré, espécie de ritual de dança de grande importância para os indígenas do Nordeste, que tem significado espiritual-religioso, e demonstra a resistência e união entre esses povos. Atualmente, o Toré está integrado ao movimento político dos povos indígenas nordestinos.

Minutos depois de iniciar o ritual, o cacique interrompeu repentinamente e olhou para nós, que estávamos sentados ao redor do terreiro, completamente absortos, encantados diante de uma manifestação cultural de povos nativos, que conhecíamos apenas pela literatura. Ele se dirigiu em direção aos três professores e perguntou para nós: quem é o chefe de vocês?
Nós não tínhamos combinado quem estava coordenando aquela missão. Acredito que, pelo fato de eu ter feito os contatos com as instituições e a reserva do hotel, os meus colegas Eduardo Gross e Quintino Araújo apontaram para mim. O Cacique então me convidou para ir até o centro do círculo, olhou firme nos meus olhos e falou em alto e bom tom: se vocês vieram aqui porque acham que nós somos exóticos e queriam tirar fotos, então já podem ir embora!

A minha postura diante daquele ocorrido, talvez tenha sido o terceiro aprendizado extra para os nossos alunos naquela viagem – conhecer e respeitar os povos nativos. Por hábito, toda vez que eu viajo para uma região desconhecida, eu sempre faço uma pesquisa para saber detalhes importantes envolvendo aspectos ambientais, históricos e culturais. Naquela ocasião, não tinha sido diferente. Respondi ao Cacique: nós estamos aqui porque somos solidários com o que está acontecendo com vocês!

Abri uma pasta e peguei uma cópia de um contrato firmado pela CHESF, no qual dava garantias de terras aos povos indígenas e que, até aquela ocasião, não tinha sido cumprido. Como o cacique me falou que não tinha uma cópia do contrato, eu deixei aquela cópia com ele. Na sequência, tirei mais alguns papéis da pasta que eu carregava, daquela vez uma reportagem publicada pelo Jornal do Commercio, de Pernambuco, contando a história de dor e desalento da tribo que há muito tempo estava sobrevivendo sem as terras que tinham direito. Entreguei cópias aos indígenas de mais algumas reportagens que outros jornais e revistas haviam feito com eles, mas que eles não tinham conhecimento. Como em uma das matérias havia uma foto de uma matriarca que havia falecido, uma das filhas começou a chorar e o clima tenso foi tomado por fortes emoções. O cacique convidou os outros dois professores e os alunos para que se aproximassem a fim de dançarmos o Toré juntamente com eles. Lembro-me de que o colega Eduardo Gross, um pouco menos apreensivo naquele momento, aproximou-se de mim e falou no meu ouvido: Arli, eu fiquei preocupado, mas você se saiu bem!
O que poderia ter sido um fato constrangedor, acabou terminando em dança. E não é qualquer dança, estamos falando do ritual do Toré!

*Arlicélio Paiva é Engenheiro Agrônomo (UFBA), Doutor em Solos (UFV) e Professor do Departamento de Ciências Agrárias e Ambientais da UESC, Ilhéus, Bahia. Insta: @arliceliopaiva

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