super blogs


A Ilha dos Daltônicos

4
1222
Arlicélio Paiva, professor doutor da UESC, Ilhéus, Bahia.

Arlicélio Paiva, professor doutor da UESC, Ilhéus, Bahia.

Por: Arlicélio Paiva, professor doutor da UESC, Ilhéus, Bahia

O neurologista e escritor inglês Oliver Wolf Sacks sempre foi fascinado por ilhas. Ao ouvir relatos de que cerca de 10% da população de uma pequena ilha chamada Atol de Pingelap, localizada na Micronésia, no Pacífico Sul, a leste das Filipinas, possuía problema de daltonismo, ele ficou interessado em conhecê-la. O daltonismo é um distúrbio causado por uma alteração genética que provoca confusão na percepção de cores, geralmente entre o verde e o vermelho e, com menor frequência, entre o azul e o amarelo. Existe uma estimativa mundial de que 300 milhões de pessoas são acometidas por algum tipo de daltonismo, sendo 8 % dos homens e 0,5 % das mulheres. O tipo de daltonismo mais grave, felizmente muito raro, é chamado de acromatopsia, que é conhecido também por “cegueira de cores”. As pessoas portadoras dessa disfunção enxergam o mundo em preto, branco e cinza.

A chamada “luz visível” é uma pequena porção da radiação eletromagnética detectável pelos olhos humanos. Existem dois tipos de fotorreceptores na retina, os bastonetes, que permitem ver as coisas em preto, branco e cinza, e os cones, que revelam as cores aos olhos. Os cones dos daltônicos portadores da acromatopsia não funcionam bem e, por isso, eles não enxergam o mundo das cores.

Os moradores do Atol de Pingelap possuem acromatopsia completa, caracterizada por baixa acuidade visual, além dos outros sintomas comuns do distúrbio. Com o objetivo de estudar essa comunidade isolada, Sacks organizou uma equipe de cientistas que viajou para a ilha. Há relatos não comprovados de que um tufão devastou a ilha por volta de 1775 e um dos poucos sobreviventes era portador do raro gene recessivo da acromatopsia, transmitindo esse distúrbio para boa parte dos seus descendentes. Depois de investigar sobre o fenômeno, Sacks elaborou uma narrativa sobre a vida dessa população, que consta no livro “A Ilha dos Daltônicos”.

Da mesma forma que o daltonismo do tipo acromatopsia leva o indivíduo a enxergar tudo em preto, branco e cinza, muitas vezes, as escolhas de uma determinada pessoa as torna também daltônica – sem, na verdade, ser –, privando-a de enxergar o mundo colorido da multiplicidade das ideias. Comportar-se também como se estivesse insulada, compartilhando as crenças e aspirações apenas com as pessoas que pensam semelhantes a si, as quais geralmente dizem o que querem ouvir, impede o crescimento pessoal, mantendo-se na chamada “zona de conforto” que, como diz o dito popular, “A zona de conforto é um lugar maravilhoso, pena que nada cresce lá”.

A acromatopsia não tem cura e a maior dificuldade da deficiência visual é entender algo que o olho jamais viu. Contudo, a simples utilização de óculos de sol alivia muito as dificuldades dos que sofrem com o gene. No caso dos indivíduos “daltônicos das ideias e escolhas”, é necessário se esforçar para assimilar o propósito do pensamento das outras pessoas ou, minimamente, ouvir com boa vontade o que pensam os outros indivíduos, mesmo que não estejam de acordo, procurando sempre tratar com deferência as opiniões adversas. Afinal, como disse José Saramago, “É preciso sair da ilha para ver a ilha. Não nos vemos se não saímos de nós”.

Nos casos mais graves do daltonismo do tipo acromatopsia, a pessoa pode adquirir a cegueira, muito bem ressaltada na frase de Clarice Lispector – “A pior cegueira é a dos que não sabem que estão cegos”. Mas, tem um tipo de cegueira ainda pior, que é a cegueira seletiva, premeditada, intencionada, em que o indivíduo só enxerga aquilo que quer ver, ignorando completamente as pessoas que possuem opiniões e opções diferentes das dele. Muitas vezes, essa cegueira pode causar dor e sofrimento ao seu semelhante que se tornou “invisível”, mas que parece não o atingir. Nesse caso, pode-se dizer que ele estará completamente insulado, isolado, vivendo na “Ilha dos Daltônicos” das opiniões, não se importando com mais ninguém! E isso é perigoso, pois, como disse Tinho Aires, “Se as feridas do teu irmão não te causam dor, a sua doença é mais grave que a dele”.

É necessário ficar atento para evitar o mergulho profundo em certezas no preto, branco e cinza que o impedirá de ver as demais “cores” do espectro das ideias. Há muitas outras possibilidades de pensamento e comportamento, há também diversas maneiras de percepção; basta se comportar de modo mais compassivo, colocando-se no lugar do outro para amenizar o “daltonismo das ideias e escolhas”. Afinal, as pessoas não são donas da verdade, apenas têm pontos de vistas diferentes que, na opinião de Leonardo Boff, “Todo ponto de vista é a vista de um ponto. Para entender como alguém lê, é necessário saber como são seus olhos e qual é a sua visão do mundo”.

4 comments

  1. Eduardo 25 julho, 2019 at 21:21 Responder

    Excelente texto (falo sério).

    Mas, o que dizer quando o “ponto de vista” do outro é a intolerância, o ódio e o preconceito?

    Por exemplo: o autor usaria seu tempo para entender que por não ser “dono da verdade” pode ou deve aceitar alguém que nutre ojeriza por todos os que se chamam “Arlicélio”? Ou aceitaria alguém que odeia professores da UESC?

    Será que o autor também acha válido voltarmos a “discutir” ou “debater” o nazismo? Ou que julguemos válido atitudes fascistas?

    Seria válido aceitarmos a estupidez do racismo? Há algum “ponto de vista” correto para validar a homofobia???

    De fato, são questões que devem ser discutidas, analisadas, pensadas… Mas, a análise racional daquilo que é constatavelmente nocivo á sociedade não pode ser confundido com aceitação (apenas porque é a “opinião”).

    Lembremos as lições dos antigos gregos quanto à validade da “doxa”.

    *-*-*-*

    O alerta quanto à intolerância e a arrogância é válido, mas é preciso separar o joio do trigo.

    Nos dias atuais, em que a internet hiperboliza e multiplica a estupidez, é preciso que não haja espaço para que o absurdo da “maldade ideológica” seja plantada.

    Determinados tons não são “cores”, são deturpações absurdas, manchas que encobrem a realidade transformando-a em uma visão turva que se não for devidamente esclarecida só produz “riscos” (ilegíveis).

    Podemos aceitar perspectivas distintas, desde que em ambas prevaleça o ideal de respeito à dignidade humana… Qualquer outra “ideia” que atente contra o ser humano (seja por que motivo for) deve ser rechaçada (e não merece respeito).

    *-*-*-*-*-**

    Reitero: Excelente texto.

    O texto traz pertinentes reflexões em um momento em que, mais do que nunca, precisamos (mesmo) pensar melhor. Parabéns ao autor.

  2. Edmundo Pereira Filho 26 julho, 2019 at 09:04 Responder

    Meu querido amigo Arlicélio, lindo texto! Deve ser duro saber dos daltônicos de pensamentos e valores sendo acometido de tetracromatismo como você é. Uma alteração genética oposta ao daltonismo.

  3. Carlos Pirovani 19 setembro, 2019 at 12:12 Responder

    Meu amigo Arlicélio,
    Mais uma vez, nos premia com uma ótima reflexão. A analogia dos indivíduos de “mentes fechadas” com o caso do daltonismo é muito boa. Precisamos lembrar que o nervo ótico leva as informações das cores em direção ao cérebro e este sim é que processa tudo. Aí entra a percepção, o processamento de tudo isto e assim,sou levado a pensar que os casos abordados no comentário do Eduardo, exemplificando a defesa do indefensável que é feita por muitos indivíduos, não trata-se de daltonismo, mais de anomalias que ocorre a partir do nervo ótico. O indivíduo que não tem defeito nesta parte do “ciclo da visão”, mesmo que não tenha globo ocular, conseguirá ver um mundo multicolorido e com todas as matizes possíveis. Por outro lado, indivíduos que apresentam anormalidade no percurso neural, principalmente na parte que está embutida dentro massa cinzenta, verá o mudo desprovido de qualquer pigmento.

Publique seu comentário

WordPress Lightbox