
Por: Arlicélio Paiva, professor doutor da UESC, Ilhéus, Bahia
Sim, é do polêmico Padre Antônio Vieira que tratamos aqui neste texto! Ele nasceu em Lisboa, Portugal no início do século XVII e aos seis anos migrou com a família para Salvador onde o seu pai exerceu a função de escrivão. Vieira teve sua formação e iniciou a vida sacerdotal em Salvador.
O Padre Vieira foi um verdadeiro ativista político e defensor dos direitos humanos da sua época. No Brasil, combateu os interesses dos escravocratas, defendendo a liberdade dos indígenas, sendo carinhosamente chamado por eles de Paiaçu (grande pai). Na Europa, Vieira lutou contra a horrenda inquisição e, por essa razão, foi preso acusado de heresia. Ele também se opôs à discriminação aos cristãos novos, como eram conhecidos os judeus.
Como consequência da sua ação prática, o poeta português Antônio Pessoa o considerou como o “Imperador da Língua Portuguesa”.
Por falar em língua, o Padre Vieira não tinha papas na língua! Falava o que lhe convinha, sem se preocupar com opiniões alheias. Segundo ele:
“A pregação que frutifica, a pregação que aproveita, não é aquela que dá gosto ao ouvinte, é aquela que lhe dá pena. Quando o ouvinte a cada palavra do pregador treme; quando cada palavra do pregador é um torcedor para o coração do ouvinte; quando o ouvinte vai do sermão para casa confuso e atónito…”.
Um dos sermões mais notáveis do Padre Antônio Vieira foi o proferido na Igreja da Misericórdia em Lisboa no ano de 1655 – O Sermão do Bom Ladrão. Na ocasião, estavam presentes o rei D. João IV, sua corte e demais autoridades. Apesar de já ter transcorrido mais de 360 anos, esse sermão, que também fazia alusão às ilicitudes ocorridas no Brasil Colonial, ainda é bastante atual, infelizmente.
No “Bom Ladrão”, a inteligência do Padre Vieira resplandece a ponto de ele demonstrar a superioridade do seu caráter perante aos moralmente apequenados agentes públicos da época, que se comportavam de forma oposta aos princípios morais, usando o poder de maneira abusiva e subtraindo o dinheiro público para enriquecimento próprio. Vieira insinua de forma discreta que as autoridades parecem ter adquirido uma licença para roubar e reclama da frouxidão da justiça na aplicação das leis para punir os infratores.
Ele denota sagacidade extrema, ao falar que as suas declarações são “por palavras não minhas, senão de muitos bons autores”. Não se intimida perante aos poderosos e afirma que “o roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza”, deixa claro que “o ladrão que furta para comer, não vai nem leva ao inferno: os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões de maior calibre e de mais alta esfera…”. Vieira continua com a sua severa reprovação às atitudes das autoridades, ou à falta delas, afirmando que “quantas vezes se viu em Roma ir a enforcar um ladrão por ter furtado um carneiro, e no mesmo dia ser levado em triunfo um cônsul ou ditador por ter roubado uma província!”.
Inspirado em relatos de São Francisco Xavier ao rei de Portugal, de que, na Índia, o verbo “rapio” (rapinar, roubar) era conjugado por todos os modos, o Padre Vieira afirma que nas colônias portuguesas se usa igualmente a mesma conjugação:
Conjugam por todos os modos o verbo rapio; porque furtam por todos os modos da arte…
Começam a furtar pelo modo indicativo, porque a primeira informação que pedem aos práticos é que lhes apontem e mostrem os caminhos por onde podem abarcar tudo.
Furtam pelo modo imperativo, porque, como têm o mero e misto império, todo ele aplicam despoticamente às execuções na rapina.
Furtam pelo modo mandativo, porque aceitam quando lhes mandam; e para que mandem todos, os que não mandam não são aceitos.
Furtam pelo modo optativo, porque desejam quanto lhes parece bem; e gabando as coisas desejadas aos donos delas, por cortesia sem vontade as fazem suas.
Furtam pelo modo conjuntivo, porque ajuntam o seu pouco cabedal com o daqueles que manejam muito; e basta só que ajuntem a sua graça, para serem, quando menos, meeiros na ganância.
Furtam pelo modo potencial, porque, sem pretexto, nem cerimónia, usam de potência.
Furtam pelo modo permissivo, porque permitem que outros furtem e estes compram as permissões.
Furtam pelo modo infinitivo, porque não tem fim o furtar com o fim do governo, e sempre lá deixam raízes em que se vão continuando os furtos.
Estes mesmos modos conjugam por todas as pessoas… Furtam juntamente por todos os tempos… Furtam, furtaram, furtavam, furtariam e haveriam de furtar mais, se mais houvesse… Em suma que o resumo de toda esta rapante conjugação vem a ser o supino do mesmo verbo: a furtar para furtar…
Parece que o Padre Antônio Vieira descreve o que vem acontecendo no Brasil há muito tempo. Aqui continuam roubando de todos os modos. E o que é pior, paradoxalmente, o povo brasileiro é tolerante à roubalheira. No Brasil, existem vários grupos organizados de várias ideologias defensores de roubadores!
A imprensa está cada vez mais especializada em suavizar a rapinagem dos agentes públicos. Palavras como “desvio de dinheiro”, “laranja” e “caixa dois”, servem para provocar confusão entre as pessoas menos esclarecidas e ajudar a dissimular o que está claro nos artigos 317 e 333 do Código Penal que tratam da corrupção passiva e ativa, respectivamente.
Parte considerável dos membros da justiça, que deveria dar o exemplo de hombridade, age com conivência e omissão, ou promove frouxidão das leis para amparar os privilegiados que parecem não ser alcançados pela justiça.
Os debates públicos, geralmente com muita balburdia, são fundamentados em assuntos de pouca relevância, com o propósito de desviar a atenção da opinião pública sobre temas importantes, cujas decisões vêm sendo impostas ao povo, como a reforma trabalhista, o congelamento dos gastos públicos e a famigerada reforma da previdência. Tudo isso com o único propósito de aumentar o abismo entre os privilegiados, protegidos por todas as instâncias da justiça, e os trabalhadores, completamente desassistidos e abandonados à própria sorte.
Além do verbo “roubar”, poderíamos muito bem conjugar o verbo “odiar”, já que o ódio está na moda. Eu te odeio porque estou sendo incentivado a te odiar! Tu me odeias porque penso diferente de ti. Ele me odeia de forma gratuita. Nós nos odiamos porque não nos escutamos. Vós me odiais porque sou diferente de vós. Eles nos odeiam porque ignoram o Artigo 1 da Declaração Universal dos Direitos do Homem – “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”.
Enquanto estamos nos odiando e criando as nossas próprias regras de comportamento e moralidade, o rapinador aproveita a nossa distração e age de forma que nos obriga a conjugar outros verbos – “arrochar”, “sucumbir”, “perecer”…
Ótima reflexão. Nesta conjugação toda do verbo roubar, existe licença especial para alguns tipos de ladrões, como a “imunidade parlamentar”, é isto mesmo ou é “IMPUNIDADE parlamentar”.
Esta “coisa” faz de conta que esses ladrões seriam algum dia julgados por uma corte especial, especialmente nomeada para nunca julgá-Los. Até que seus qualificados crimes com nomes que os comuns não compreendem prescrevem.
Máxima dos dias atuais
Certa vez já disse o padre
O mestre Antonio Vieira
Ao pregar para um confrade
Num dia de sexta-feira
No sermão do “Bom Ladrão”
Uma máxima que vale
Para toda esta nação
Que troca lama por vale
Uma máxima sintética
De uma profunda beleza
Cujo fim não tem desculpa
Pela leveza poética:
“O roubar pouco é uma culpa
O roubar muito é grandeza!”
Muito bom ! Siga escrevendo !!!!
“Conjugando o verbo ´roubar´” do Prof. Dr. Aricelio entra na categoria do conto quanto à brevidadde e à intensidade. Se por um lado o conto se aproxima do romance, por outro é mais afim com a poesia.
Os temas do conto são inúmeros. No meu entender, o conto do Dr. Aricelio. com um pé no realismo histórico e com outro na vida política do Brasil atual, se aproxima do artigo jornalístico.
Dos fatos do passado a narração passa para o ocorrido no presente e acrescenta, ao verbo roubar, o verbo “odiar”. Assinala assim a situação vivida pelo Brasil no momento presente. Uma verdadeira denúncia.
Termina com uma severa autocrítica: enquanto eles conjugam os verbos roubar… nós conugamos – na voz passiva – os verbos “arrochar… terminado com o verbo “perecer”, que poderá culminar no “consumatum est”.
Enriquecer com a genialidade de Padre Vieira uma percepção já tão rica de nossas históricas patologias sociopolíticas, faz desse texto uma chancela inquestionável da capacidade crítica humana ainda possível. Grato Professor!