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A Vida Aleatória de Otomiro Miranda

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Por Arlicélio Paiva

Nossa turma do colégio agrícola era composta por 17 alunos muito unidos. Havia um sentimento profundo de cumplicidade e lealdade entre nós. Para não dizer que éramos todos do tipo “um por todos, todos por um”, nos moldes de Alexandre Dumas, devo falar de Otomiro Miranda que nós considerávamos como avoado, parecendo viver em um mundo formatado por ele e para ele, onde ninguém em sã consciência poderia penetrar. Mesmo assim, nós sempre procurávamos incluir Otomiro no nosso grupo para os estudos, para as aulas práticas de campo e, sobretudo durante as brincadeiras.

Tudo que sabíamos da vida de Otomiro, nos foi contado por Zé Piau, que era mais próximo dele. Os dois dividiam o mesmo quarto no internato do colégio agrícola. Otomiro Miranda nasceu na cidade de Boqueirão do Joaci, no sertão são-franciscano, na década de 1960. Não sei se pela lonjura do seu torrão natal ou se pelo seu jeito reservado de ser, a única família que nós não conhecíamos era a dele. Nem mesmo Piau teve oportunidade de conhecer os Miranda.

As aulas de campo na Caatinga repleta de umbuzeiros carregados de frutos grandes e doces era um dos momentos mais divertidos para a nossa turma. O único que não tinha empolgação era Otomiro. Ele não aceitava experimentar o sabor do umbu. Quando perguntado o motivo, sempre respondia que “umbu de verdade era o do Boqueirão de Joaci”. Por mais que insistíssemos, a sua resposta padrão era sempre de recusa.

Foi por intermédio de Piau que soubemos o motivo pelo qual Otomiro só chupava os umbus do Boqueirão do Joaci. Desde muito cedo ele teve apego pelos umbuzeiros que eram plantados pelo seu falecido avô, pelo seu pai e por ele nos quintais, roças e Caatinga do Boqueirão do Joaci. Os Miranda consideravam os umbuzeiros plantados por eles como árvores sagradas, pelos quais tinham zelo e devoção. Otomiro considerava que chupar um umbu que não fosse do Boqueirão era uma traição aos umbuzeiros que davam prazer e alegria para a sua família. Por isso, ele jamais ousou experimentar um umbu que não fosse do seu torrão natal.

Depois da nossa formatura na década de 1980, cada um tomou um rumo diferente. A vida no sertão era difícil e cada um procurou um meio de sobrevivência. Cinco anos depois de formados, fizemos o primeiro encontro da nossa turma do colégio agrícola. Apareceram apenas sete para a comemoração. Apesar do pouco número, a festa foi de completa alegria. Deixamos os papos em dia e soubemos que vários colegas já estavam trabalhando, alguns casados e outros com filhos. Descobrimos o paradeiro de todos, menos o de Otomiro.

Nos dez anos de comemoração, compareceram todos, menos Otomiro. Dessa vez tivemos notícia dele por intermédio de Zé Piau que não tinha comparecido na comemoração anterior. Soubemos que Otomiro Miranda estava milionário. Ele era irrigante de cebola nas margens do Rio São Francisco e, em um determinado ano, parece que Ceres, a Deusa da agricultura, concentrou todo o seu poder e destinou toda a sua benevolência em favor de Otomiro. Naquele ano, além da boa safra, a cebola alcançou elevados preços no mercado e, foi o suficiente para Otomiro ganhar dinheiro para “juntar de rodo”, como nos disse Zé Piau. Nós queríamos saber como estava a vida de Otomiro, se estava casado, se tinha filhos, o que fez do dinheiro. Mas, Piau não sabia informar mais detalhes. Quem lhe contou foi um primo de Otomiro que ele encontrou em Juazeiro.

No encontro dos quinze anos de formados, compareceram todos, inclusive Otomiro. Esperávamos que ele chegasse em um carrão de luxo, mas veio de carona com Piau. Dessa vez, o encontro juntou muita gente. Todos apresentaram suas esposas e filhos, menos Otomiro que veio sozinho. Em certo momento da festa reunimos os 17 em um canto reservado para ouvir Otomiro.

Ele nos contou que depois que ficou milionário, convidou um irmão e dois primos para assistirem a Copa do Mundo de 1990 na Itália. Eles se hospedaram no mesmo hotel da seleção brasileira em Turim e ficaram íntimos de alguns jogadores. Naquela copa o Brasil foi o primeiro colocado do Grupo C e depois foi eliminado pela Argentina ainda nas oitavas de final. A seleção brasileira voltou para casa, mas Otomiro e os seus convidados ficaram acompanhando jogos de outras seleções nas cidades de Florença, Roma, Milão, Nápoles e Bari. Os seus olhos brilharam quando ele falou da emoção do jogo final da copa no Stadio Olimpico em Roma, quando a Alemanha foi campeã na presença de mais de 70 mil pessoas.

Depois de um mês na Itália custeando as despesas de quatro pessoas com hospedagens nos melhores hotéis, alimentação nos melhores restaurantes e compra de presentes para a parentada, o irmão de Otomiro e um dos primos retornaram ao Brasil, mas ele resolveu continuar a façanha na Europa juntamente com um dos primos. Queria conhecer “o resto do velho continente”, como ele nos falou. Continuou a esbanjar riqueza, não economizando em nada. Naquela altura da conversa, todos nós ainda permanecíamos em silêncio, pois Otomiro contava a história nos mínimos detalhes e, prendia a nossa atenção, a ponto de só ouvirmos a nossa respiração. Todos queriam saber o fim da história. Otomiro retornou ao Brasil depois de três meses “torrando o dinheiro”. Apesar de ter trazido muitos presentes, a “mulher não quis nem olhar na minha cara”, como disse ele. Otomiro já não tinha mais dinheiro; por sorte tinha construído uma casa confortável e montado uma loja de roupas para a esposa, e ela pôde viver a vida sossegada, criando o filho do casal.

Enquanto todos nós lamentávamos pela falta de planejamento de Otomiro que o deixou pobre novamente, Zé Piau, irritado, berrava repetidamente “você é um burro”, “não acredito numa desgraça dessa”; Otomiro sorria, não demonstrava nenhum sinal de arrependimento e, dizia apenas “foi desinsorte, moço”. Voltamos para a festa onde estavam as nossas famílias, cochichando uns com ou outros “eu não acredito que Otomiro fez isso”, “não é possível”, “esse homem não tem uma gota de juízo”. A festa acabou e nós fomos para casa inculcados de como Otomiro teve a competência de fazer uma coisa dessa.

No encontro dos vinte anos de formados, era natural que a atenção se voltasse novamente para Otomiro, queríamos saber como estava sua vida. Dessa vez Piau veio de carona com ele em uma picape imponente, cheia de faróis e acabamentos cromados que chamava muita atenção e, era o indicativo de que Otomiro tinha dado a volta por cima. Depois dos cumprimentos fomos apressados para um local reservado para ouvirmos Otomiro. Agora ele era empregado de Piau e seu homem de confiança.

Depois do último encontro, Otomiro trabalhou como representante de “plano familiar”, oferecendo serviços funerários em todo sertão do Médio São Francisco. Como o negócio não estava indo bem, começou a fazer um bico como traficante de papagaio para lhe render mais algum dinheiro. Ele contava com tal simplicidade que aquilo parecia um serviço honesto e que ele tinha orgulho de ter feito. Nós não acreditávamos que um homem que teve oportunidade de conhecer o coliseu de Roma, a torre Eiffel de Paris, o big ben de Londres, a catedral da Sagrada Família de Barcelona, a torre de Belém de Lisboa, dentre outros importantes monumentos da Europa, e; que dispôs de tempo para aprender a história e a cultura de diversos países europeus, poderia relatar com orgulho que traficava papagaios ainda com penugem e que quase a totalidade morreria por maus tratos. Nós interrompemos a conversa de Otomiro para alertá-lo do crime que ele estava cometendo e das implicações legais. Ele nos justificou de só tinha feito aquilo por um curto período.

Piau nos disse que certa feita Otomiro foi visitá-lo de surpresa. Como ele tinha viagem marcada, deixou o ex-colega de colégio agrícola com mais dois primos em sua casa com a recomendação de que “pode ficar à vontade que a casa é de vocês”. Eles aproveitaram o conforto da casa de Piau, tomaram banho de piscina e caíram na farra. Otomiro percebeu que Piau criava uma galinha meio “desengonçada” em um poleiro no quintal e, mesmo assim, torceu o pescoço da “penosa” e levou para a panela. Ele não gostou do sabor da galinha, já que “as do Boqueirão do Joaci eram muito melhores, pois essa tinha a carne dura”. Depois do retorno de Piau, Otomiro lhe contou sobre a farra e que havia comido a galinha que estava no poleiro. Não querendo acreditar no que o amigo lhe disse, Piau saiu apressado rumo ao quintal e encontrou as penas da galinha que ele havia comprado por cinco mil reais para melhorar o seu plantel de poedeiras. A sua vontade era de “torcer o pescoço do infeliz”, mas, depois, “esfriou a cabeça’ e perdoou o amigo que estava em situação desfavorável.

Depois de algum tempo, Piau convidou Otomiro para trabalhar com ele, ajudando a gerenciar os galpões de galinha caipira poedeira que estavam lhe rendendo um bom dinheiro. Os dois amigos se entendiam muito bem e andavam o tempo todo juntos. Piau estava tentando organizar a vida do amigo que já foi milionário um dia e que agora precisava da sua ajuda.

Continuamos conversando com Otomiro e percebemos que ele não demonstrava nenhum arrependimento, não tinha ressentimentos pelo que passou na vida. Quando lembrava das suas peripécias na Europa, apresentava um brilho cintilante nos olhos, como se estivesse vivendo naquele instante o mesmo prazer e emoção do tempo em que ele foi milionário. Assim estava sendo a vida de Otomiro Miranda, sem planejamento, completamente aleatória.

2 comments

  1. Laerte Amorim 22 março, 2020 at 18:27 Responder

    Parabéns Arli pela riqueza de detalhe na história. A história sendo totalmente real ou não, existe muitos Otomiros. Nisso tudo fico feliz em saber que ele vive sem se martirizar por ter perdido tudo.
    Vida que segue!

  2. Laerte Amorim 22 março, 2020 at 18:35 Responder

    Parabéns Arli pela riqueza de detalhes da história. Tratando a história como real, existe muitos Otomiro’s. Mas nisso tudo, fico feliz em saber que ele vive sem se martirizar por ter perdido “tudo”.

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