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Meu amigo branco não aceita que o “criado mudo” mudou e se deseja além de criado!

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Por Caio Pinheiro

Dias desses um amigo branco me afirmou em tom de desabafo que há negros discriminando racialmente indivíduos brancos. Convicto, defendeu a existência do racismo reverso, ou seja, o racismo desferido contra pessoas brancas. Para este, têm crescido as hostilidades contra os brancos por parte de homens e mulheres afrocentrados (as). Chegou a falar de uma verdadeira guerra inter-racial em andamento. Contrariado, sentenciou que “todos somos iguais”, daí não ver sentido na luta antirracista, nas políticas de promoção da igualdade racial e na política de cotas.

Bem, se fosse num outro momento, quando a sensatez da maturidade etária e intelectual me faltavam, era certo que iria mergulhar numa guerra de ofensas e depreciações contra esse discurso. Contudo, se o tempo me presenteou com a assertividade, lendo Paulo Freire aprendi que dificilmente quem está na zona de conforto quer sair dela. Como defendeu Freire, a mudança é difícil porque alguém vai perder com ela, já que não consegue enxergar o que pode ganhar com a mesma.

Depois de ouvir atentamente meu amigo branco, esse verdadeiro representante da branquitude – termo que representa a defesa dos privilégios das pessoas brancas -, lembrei do velho Aristóteles. Esse filósofo grego nos ensinou que o ser humano é o único ser vivo dotado de razão/intelecto. Assim, como um animal racial, o homem demanda conhecer. Nesse sentido, para conhecer racionalmente, precisamos nos concentrar mais nas perguntas e menos nas respostas. Foi assim que comecei a desconstruir o mimimi do meu querido amigo branco. Sim, amigo. Acho que o segrego de existir é conseguir co(existir) com o outro.

Então, lhe fiz uma pergunta muito simples. Lhe indaguei se um homem branco deixa de ocupar um cargo de chefia na empresa em que trabalho porque é branco. A resposta foi assertiva: não. Então refiz a pergunta mudando o sujeito. No lugar do homem branco coloquei um homem negro. A resposta foi um silêncio constrangedor, para em seguida dizer que tudo depende, pois ele conhece um negro que conseguiu o cargo de gerente.

Eis o clássico argumento da branquitude: há negros ocupando espaços de poder e exercendo profissões prestigiadas socialmente, por isso a tese da discriminação racial como fato que dificulta a ascensão social e econômica de negros e negras não tem fundamento. Mas como se diz no senso comum, perguntar não paga. E assim agir. Dirigir ao meu amigo branco mais uma pergunta simples, contudo, espinhenta. Lhe inquirir quantos médicos, juízes, promotores, desembarcadores, procuradores, empresários e executivos negros conhecia. Imaginei como respostas muitos nomes, pois se não há racismo contra os negros como sustenta, e sendo nós a maioria numérica da população, o certo é que sejamos também a maioria desses profissionais.

A resposta foi uma fala descompassada e constrangida. Com serenidade informei ao querido amigo branco que racismo significa interditar, desqualificar, inferiorizar, silenciar, desconsiderar, subestimar um indivíduo em decorrência de seus traços fenótipos. E, como sabido, embora negado por muitos, os afrobrasileiros são interditados, desqualificados, inferiorizados, silenciados, desconsiderados e subestimados por sua ascendência africana. É dessa maneira que o racismo brasileiro, tipo exportação, instituiu o que é “coisa de negro e coisa de branco”.

Sob essa tese racista é que podemos compreender o caso que envolve o jovem negro Matheus Ribeiro, 22, acusado injustamente de furtar a sua própria bicicleta por um casal branco no Leblon, bairro nobre da zona sul do Rio de Janeiro, e que agora está sendo investigado por receptação do mesmo veículo. À despeito da legitimidade do processo investigativo, é claro que causou estranhamento o fato de um homem negro possuir um bem normalmente possuído por pessoas brancas. Um bem que dado seu valor monetário, na visão racista, dificilmente será propriedade de um homem negro.

O caso Matheus é sintomático, na medida em que demostra a correlação entre racismo, desigualdade social e concentração de renda. É constrangedor, mais em pleno século XXI a naturalização na miséria material do negro mostra coma a herança da sociedade escravocrata se mantém. Os símbolos da riqueza material são vistos como inacessíveis aos negros. Por hora me resta dizer que o criado mudo mudou e não aceita ficar mudo e se deseja além de criado.

1 comment

  1. Pedro. 23 junho, 2021 at 08:15 Responder

    Parabéns pelo texto. Realmente ainda está em curso um processo de colonização cultural por padrões brancos. A luta para desconstruir esse complexo de vira-latas deve ser constante. Talvez o primeiro passo seja se armar de ideias e leitura. Obrigado.

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