A melhor defesa é o ataque
Arlicélio Paiva
O pacato município de Velame do São Francisco fica no sertão da Bahia, lá pras bandas do Juazeiro, com população que não passava dos 10 mil habitantes. Lá, todo mundo conhecia todo mundo. Belmiro Medeiros era o homem mais rico, o maior fazendeiro e também o comerciante mais afamado da cidade. Seu Belinho, como ele era conhecido por todos, era dono da Churrascaria Medeiros, onde se comia o melhor churrasco e bebia a cerveja mais gelada daquela região.
Seu Belinho tinha uma vida simples, sempre dedicada ao trabalho. Todos os dias, ele cuidava da sua fazenda e visitava os seus fornecedores para ter certeza de que sempre estaria adquirindo os melhores produtos para continuar prestando o habitual serviço de qualidade para a sua clientela.
A sua fazenda de criação de gado na beira do São Francisco era gerenciada por Arnóbio, seu homem de confiança. A labuta diária começava sempre muito cedo e só acabava quando a noite chegava. Arnóbio tinha um eficiente controle do manejo do gado. Ele cuidava de cada detalhe das vacinas, medicações, suplementos alimentares, marcação de animais, aparte de bezerros, retirada do leite e abate do gado. Dava conta de tudo com muito capricho.
O capataz morava na fazenda em uma casa próxima da sede, onde seu Belinho residia com a sua família. Certa noite aconteceu uma confusão na casa de Arnóbio e o barulho foi escutado na casa do seu patrão. Na manhã seguinte, seu Belinho perguntou para Arnóbio sobre o que havia acontecido, mas o gerente lhe disse que teve um desentendimento com a mulher, mas que estava tudo resolvido. Aproveitando a ausência de Arnóbio, o vaqueiro Vanderlí cochichou para seu Belinho que o capataz estava amigado com uma mulher desajuizada e que ela metia a porrada nele de vez em quando.
Dias se passaram e numa determinada noite seu Belinho ouviu mais uma vez o barulho da confusão que estava ocorrendo na residência do seu gerente. Ele se dirigiu até a casa e gritou bem alto – Arnóbio! O capataz surgiu na porta e seu Belhinho perguntou – Que `livusia` é essa que está acontecendo aqui na sua casa? Meio sem jeito, Arnóbio respondeu – Né nada não, seu Belinho é que às vezes a mulher apronta e eu tenho que dar uma `exemplagem` nela, pra ver se toma jeito. Seu Belinho deu uma bronca em Arnóbio e disse que não queria saber de confusão nas suas terras.
No dia seguinte, o mesmo vaqueiro da vez anterior contou para seu Belinho que Arnóbio continuava apanhando da mulher do mesmo jeito. Zeloso com seus funcionários, seu Belinho aconselhou a Arnóbio a arrumar outra mulher e resolveu transferir o capataz para a cidade, a fim de gerenciar sua churrascaria.
Arnóbio aceitou a proposta de seu patrão com bom gosto, separou da mulher e se mudou para a cidade. Seu Belinho autorizou que Vanderlí fosse junto, atendendo um pedido do capataz. Com o passar dos anos, Arnóbio casou-se novamente e teve uma menina chamada Isabela, apelidada pelos pais de Belinha.
Enquanto seu Belinho se dedicava à compra de produtos para o comércio, Arnóbio gerenciava a churrascaria, orientando o preparo dos alimentos, cuidando da limpeza do recinto, fiscalizando a reposição das bebidas e corrigindo pequenos deslizes dos garçons. Os clientes passaram a ser mais bem atendidos por garçons treinados por Arnóbio e a fama do negócio fez com que, nos fins de semana, muitos clientes do Juazeiro passassem a frequentar a Churrascaria Medeiros.
Merecidamente, Arnóbio se dava ao luxo de se tornar um exigente cliente da churrascaria, a partir das 16h00 de todos os domingos. Ele comia compulsivamente e bebia descontroladamente, chegando em sua casa embriagado, completamente cambaleante. Mesmo sendo um homem trabalhador, sua nova esposa, Dinorá, não tolerava esse pequeno deslize e esculachava o marido, chegando ao ponto de lhe dar algumas bofetadas de vez em quando.
Toda segunda-feira cedo, Arnóbio sempre ia para a churrascaria cuidar dos seus afazeres, como se nada tivesse acontecido. Certo domingo, Arnóbio bebeu mais exagerado do que nunca e teve que ser levado para casa por Vanderlí, que naquela altura, era o seu garçom de confiança. Dessa vez, Vanderlí presenciou o despautério que Dinorá dirigiu ao marido. No dia seguinte, antes de ir para a churrascaria, Vanderlí passou na casa do seu patrão, seu Belinho, e contou os disparates que Dinorá proferiu para Arnóbio – Seu Belinho, essa outra mulher não tem uma gota de juízo, parece uma burra braba, tirou dos gatos e dos cachorros e jogou para cima do homem! O senhor precisava ver a bagaceira!
Mesmo descontente com a atitude da nova esposa do seu empregado de confiança, seu Belinho permaneceu a semana inteira calado até chegar ao domingo seguinte, quando ele fez questão de acompanhar Arnóbio até a sua casa. Ao chegar à residência, Arnóbio entrou na frente, acompanhado pelo seu patrão que vinha logo atrás. Sem perceber a presença de seu Belinho, tampouco conseguindo controlar o seu ímpeto de ira, Dinorá avançou sobre o marido, mas dessa vez foi contida por seu Belinho que a segurou com firmeza pelos braços e lhe falou em tom imperativo – Na minha presença ninguém toca em Arnóbio! O garçom bêbado, sorrindo, olhou para a esposa e falou em tom desafiador – Tá vendo aí, sua desonrada como é que um homem de verdade faz? Vai, esculhamba agora comigo, na frente de seu Belinho, se tu for mulher! Só depois de acalmar os ânimos do casal, seu Belinho se retirou da local.
Dias depois, seu Belinho estava passando com sua picape pela frente da casa de Arnóbio, e a esposa do garçom acenou com a mão, pedindo para ele parar. Seu Belinho, um homem honrado e sério, cumprimentou formalmente a esposa do seu empregado – Bom dia dona Dinorá, como vão as coisas em casa? Ela então respondeu – Depois daquele dia, eu pensei melhor no que o senhor disse e deixei de birra com Nóbio. Seu Belinho elogiou a postura da dama e disse que tinha que sair por causa de seus compromissos. A mulher do garçom então lhe falou – Apareça outro dia aqui com mais calma para a gente tomar um cafezinho!
Os dias se passaram e seu Belinho continuou com sua rotina de cidade sertaneja, sem fazer juízo sobre o convite de Dinorá. Certa feita, o comerciante estava em um jantar íntimo em sua casa, comemorando o aniversário de casamento, quando Arnóbio bateu à sua porta, levando um buquê de rosas vermelhas para que ele oferecesse à sua esposa, dona Valquíria Medeiros. Seu Belinho agradeceu ao gerente pela prestimosa lembrança e o convidou para adentrar, mas ele recusou o convite. Dona Val tinha percebido o que aconteceu e pediu ao esposo para colocar as rosas no vaso d´água. O jantar continuou sem nenhum estranhamento com o ocorrido.
Pela primeira vez em sua vida, Belmiro Medeiros passou uma noite em claro, sem pregar o olho, tentando decifrar o significado daquelas rosas vermelhas – Isso deve ser um prenúncio de que serei corno – imaginou ele. E continuou matutando – Mas, corno desse jeito, sendo o primeiro a saber! Não faz o menor sentido! Corno que é corno, é o ultimo a saber! Um homem traído tem que sofrer com a traição! Eu não me vejo sendo corno sem encher a cara de pinga e sem ficar com o coração dilacerado, ouvindo “Eu não sou cachorro não” de Waldick Soriano. E cantarolou mentalmente – ”A pior coisa do mundo / É amar sendo enganado / Quem despreza um grande amor / Não merece ser feliz, nem tão pouco ser amado / Tu devias compreender / Que por ti tenho paixão / Pelo nosso amor / Pelo amor de Deus / Eu não sou cachorro não”.
Os dias se passaram e seu Belinho ponderou em aceitar o convite da esposa do seu empregado. Ele passou a acreditar na célebre frase do General chinês Sun Tzu – “A melhor defesa é o ataque”. No dia seguinte, ao passar em frente à casa de Arnóbio, parou o carro, e foi recebido por Dinorá com um sorriso conquistador. Sério, como sempre, cumprimentou a dama e lhe falou – Bom dia dona Dinorá, eu resolvi aceitar o seu convite. A dama, toda derretida, lhe disse – `Apois` chegue! O comerciante então retrucou – Aqui não senhora, lá no Juazeiro!
Coerente com a forma austera com que sempre agiu, na semana seguinte seu Belinho foi para o Juazeiro juntamente com Dinorá e Arnóbio e “colocou as cartas na mesa”. Depois de uma longa conversa, os três acertaram que Dinorá passaria a residir no Juazeiro para que Isabela pudesse estudar numa escola de melhor qualidade, tudo custeado por seu Belinho, e Arnóbio seria dono da metade da churrascaria do Velame. A partir do acerto, seu Belinho passou a fazer visitas semanais a Dinorá com o consentimento do seu marido, Arnóbio ficou com metade do comércio mais afamado do Velame e Dinorá conquistou os dois homens que desejava. Tudo isso, como estratégia de defesa encontrada por seu Belinho, um homem honrado e sério, para evitar que se tornasse corno.