secom bahia prefeitura ilheus pmi


O que não provoca minha morte faz com que eu fique mais forte

0
413

Arlicélio Paiva*

A completa cessação dos processos vitais que ocorre em todos os organismos vivos é denominada de morte. Nos humanos, a morte é tida como um mistério que envolve tabu e superstição, de tal modo que os homens são os únicos seres vivos que enterram os seus mortos de maneira sistemática.

As antigas civilizações tinham diferentes compreensões sobre a morte. Os rituais, os funerais e os túmulos eram feitos de acordo com as crenças e as culturas de cada povo. Os egípcios antigos mumificavam os mortos e acreditavam na vida após a morte, com reunificação do corpo físico e da alma. Na antiga Mesopotâmia, a morte era temida e o espírito continuava sofrendo depois da morte, apresentando assim, as mesmas carências e sentimentos dos vivos. Por isso, eles ofereciam alimentos aos seus mortos. Nas antigas Grécia e Roma, acreditava-se em vida após a morte. Os deuses Hades (grego) e Plutão (romano) governavam o submundo dos mortos. Para os chineses antigos, a vida terrena continuava após a morte.

Na visão de alguns dos filósofos da antiguidade, a morte não era ruim, era vista com despreocupação, por essa razão, não se deveria temê-la. No entendimento de Sócrates e Platão, o corpo prendia a alma e a morte era um meio por intermédio do qual a alma se libertava definitivamente do corpo para encontrar a verdadeira virtude e felicidade. De acordo com Aristóteles, a morte era inevitável e teria que ser encarada com coragem. Viver com virtude é o que mais importava.

Mas, nem todos os filósofos tinham a mesma concepção sobre a morte. Vivendo em uma época em que a ira dos deuses e a morte amedrontavam os gregos, Epícuro possuía uma visão muito particular sobre o tema. Para ele, “a morte não é ruim, não devemos temê-la”. Com esse pensamento, ele contribuiu para libertar pessoas desse receio. Segundo ele, “enquanto existimos, a morte não está presente, e quando a morte está presente, não existimos mais”. Seria plausível acreditar que Gilberto Gil empregou uma visão epicurista para compor a música “Não Tenho Medo da Morte” – “Não tenho medo da morte / Mas sim medo de morrer / Qual seria a diferença / Você há de perguntar / É que a morte já é depois / Que eu deixar de respirar / Morrer ainda é aqui / Na vida, no sol, no ar…”. Epícuro acreditava que o universo era constituído por minúsculos e indivisíveis pedaços de matéria (átomos), inclusive a alma, que seria composta por frágil matéria que desapareceria no instante da morte. Portanto, para Epícuro, a morte era inevitável e natural. As partículas desintegradas de um corpo dariam origem a outro corpo. Por essa razão, ele afirmava que “a morte nada significa para nós”.

O filósofo Michel de Montaigne (1533 – 1592) escreveu em um dos seus Ensaios “Que filosofar é aprender a morrer”. De acordo com ele, falar sobre a morte é uma forma de preparação mental para sua chegada – “Meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade; quem aprendeu a morrer desaprendeu a servir; nenhum mal atingirá quem na existência compreendeu que a privação da vida não é um mal; saber morrer nos exime de toda sujeição e constrangimento”. Para ele, é necessário viver sem temer a morte. Nesse sentido, Montaigne cita o poeta Lucrécio – “Por que não sair do banquete da vida como um conviva saciado?”.
Esse tema também foi tratado pelo poeta de língua alemã Rainer Maria Rilke (1875 – 1926) no romance “Os Cadernos de Malte Laurids Brigge”, no qual o autor abordou vários assuntos, inclusive a tentativa de compreender o significado da morte. Malte era obcecado pela morte e olhava para as pessoas nas ruas, imaginando que a morte de cada uma delas era única, como o seu rosto e sua personalidade.
Inconformado com o tipo de morte que ele via ao seu redor, Malte percebia que “o desejo de ter uma morte própria se torna cada vez mais raro”. Ele observava que “outrora se sabia que se tinha a morte dentro de si da mesma maneira que o fruto tem os seus grãos”. Até “mesmo os ricos, que poderiam se permitir uma morte minuciosa, começam a se tornar descuidados e indiferentes; o desejo de ter uma morte própria se torna cada vez mais raro”. Para ele, as mortes estavam ocorrendo de “um modo industrial”. O avô de Malte era camareiro da corte e, no seu modo de ver, ele teve uma morte principesca, não porque ele levava uma vida suntuosa, mas pela falta que o serviçal estava fazendo nas tarefas diárias. A sua morte invadiu todos os cômodos do palácio onde o criado cuidava com muito esmero, ele foi mais importante durante as duas semanas posteriores à sua morte do que em toda a sua vida – “foi mais senhoril do que jamais fora”.

A visão epicurista permite considerar que um corpo humano nada mais é do que um amontoado de átomos. Portanto, ao se desintegrar, esses átomos podem ser reintegrados mais uma vez em uma forma qualquer, como uma cunha de um cabo de enxada ou um tijolo de uma parede de um presídio. A matéria criada desde a formação do universo vai permanecer de qualquer maneira, apenas muda de forma. Quem dá importância à forma da matéria é a prática dos valores de humanidade, que é fundamental para reconhecer o significado e o valor das pessoas ainda em vida, e não deixar que elas sejam importantes apenas depois de mortas, como ocorreu com o camareiro da corte, avô de Malte.
Parece que as pessoas não se incomodam tanto com a morte, mas, sim, com a forma de morrer. Um estúpido atentado terrorista que pode matar poucas pessoas causa maior repulsa e indignação do que a morte de milhares de pessoas provocada pela prazerosa ingestão de alimentos insalubres. Nesse último caso, a morte atinge aos poucos, dando tempo para que amigos e familiares se acostumem com a ideia da despedida. Ainda nesse sentido, observa-se que há um paradoxo na ação do Estado que, para preservar vidas, multa as pessoas que não usam cinto de segurança no trânsito, mas, por outro lado, não oferece um serviço público de saúde decente, deixando milhares de indivíduos morrerem por falta de atendimento médico.

Quando ainda jovem, Santo Agostinho experimentou a mais profunda solidão ao perder um grande amigo de infância, principalmente ao se deparar com a finitude da vida. Segundo ele “…desgraçada é toda alma presa pelo amor às coisas mortais. Despedaça-se quando as perde e então sente a miséria que a torna miserável, ainda antes de as perder”. Mais tarde, com a morte da sua mãe, Santo Agostinho já tinha aprendido a amar de forma transcendental e não sofreu tanto, pois “este é imperecível”. Talvez, por essa razão, atribuíram a ele uma frase que foi dita pelo Cônego Henry Scott Holland (1847 – 1918) de Oxford – “A morte não é nada. Eu somente passei para o outro lado do Caminho”.

Embora as diferentes crenças religiosas, em geral, veem a morte como um processo natural de passagem para outra fase da vida, a maneira como as pessoas lidam com isso depende de cada indivíduo e da sua fé no âmbito religioso. Para o poeta mexicano Amado Nervo (1870 – 1919), “As pessoas que amamos nunca morrem, apenas partem antes de nós!”. Mas, prevalece sempre o sentimento de perda, principalmente para aqueles que vivem como se a vida terrena não tivesse fim e negam a morte, acreditando na imortalidade. De acordo com o escritor Milan Kundera, “Ser mortal é a experiência humana mais essencial e, no entanto, o homem nunca foi capaz de aceitá-la, compreendê-la e comportar-se de acordo. O homem não sabe ser mortal. E quando ele morre, ele nem sabe que está morto”. Portanto, é importante internalizar o que disse o escritor japonês Haruki Murakami – “A morte não é o oposto da vida, mas uma parte dela”. No mais, é fundamental viver sem temer a morte, já que, segundo Friedrich Nietzsche, “O que não provoca minha morte faz com que eu fique mais forte”.

*Arlicélio Paiva é Engenheiro Agrônomo (UFBA), Doutor em Solos (UFV) e Professor do Departamento de Ciências Agrárias e Ambientais da UESC, Ilhéus, Bahia. Insta: @arliceliopaiva

Publique seu comentário

WordPress Lightbox